sábado, 5 de abril de 2008

Presença africana no Brasil*

Passados mais de 500 anos da chegada de portugueses no território brasileiro, a nação que neste espaço se ergueu está desafiada a responder pelos danos que causou a si mesma durante este percurso histórico. Dentre as demandas que se apresentam aos brasileiros da contemporaneidade, sem sombra de dúvida, está a necessidade de se refletir sobre o criminoso passado escravista aqui vivido. Com efeito, o Brasil ainda não estabeleceu a paz com a história de séculos de escravidão. O profeta Isaías afirma que "o fruto da justiça será paz, e a obra da justiça a tranqüilidade e segurança para sempre!"(ISAÍAS, 32, 17). Se a afirmação do profeta merece crédito, estabelecer a paz com o passado escravista do Brasil significa retomar o compromisso social de se praticar a justiça. As análises do conceito de justiça o definem como critério por meio do qual os homens repartem o bem produzido socialmente (SANTOS, 1997, p.10). Os frutos das culturas[1] devem ser distribuídos entre os participantes de uma sociedade, para que as relações entre os mesmos aconteçam de forma a garantir a condição humana. Salvo melhor juízo, as estatísticas todas apontam as populações de matriz africana, no Brasil, como aquelas que têm os piores índices de desenvolvimento humano. Tem-se aqui, concretamente, a caracterização de nefastos processos de negação da condição humana destes segmentos da sociedade brasileira[2]. Portanto, há um eclipse da justiça, conseqüentemente, uma ameaça à paz. Se a injustiça tem alguma relação com os séculos de escravidão, é preciso fazer a paz com o passado escravista. De que modo o Brasil tem lidado com a presença negra em seu território? Como os setores dirigentes da sociedade brasileira e as elites que fabricam opinião têm se posicionado a respeito da presença do africano no país? Embora recentes pesquisas científicas estejam confirmando a existência de uma única espécie humana no mundo, superando o conceito plural de raça, as relações entre as populações no Brasil são profundamente racializadas. O quadro até aqui descrito, quando apresentado à consciência da maioria dos interlocutores neste país, causa estremecimento. Como recorda Munanga[3] pratica-se, no Brasil, um racismo silencioso, caracterizando a situação em que "o criminoso mata duas vezes, a segunda pelo silêncio". (MUNANGA, 1996, p. 213). No Brasil, o racismo silenciado está marcado pelas práticas que separam as pessoas a partir de suas matrizes fenotípicas africanas. Este procedimento é revestido por um conjunto de imagens que impedem a explicitação de suas contradições. Assim sendo, cresce no Brasil uma deficiência cívica racializada sem que seus praticantes tomem consciência dela. Um comportamento que lembra a incapacidade de se distinguir com perfeição as cores, um daltonismo racial (NOGUEIRA, 1985, p. 8). No caso brasileiro, as pessoas relacionam-se com descendentes de africanos e, ainda que estes tenham o fenótipo explícito de pessoa negra, não são reconhecidos como vítimas de mecanismos excludentes por causa das mesmas marcas africanas. No Paraná, por exemplo, é freqüente ouvir-se, que sua população desconhece a presença de africanos, posto haver sido colonizado por imigrantes europeus. Esta suposição não se sustenta historicamente. Prova disto são as realizações do grupo Clóvis Moura[4]. O grupo de trabalho batizado com o nome do conhecido pesquisador da diáspora africana no Brasil foi instituído na gestão do governo de Roberto Requião, em fevereiro de 2005. Sua atuação é patrocinada por vários órgãos do governo, dentre eles as Secretarias de Educação, de Cultura, de Comunicação Social, de Assuntos Estratégicos, do Meio Ambiente (SEMA), o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Instituto de Terra e Cartografia (ITC). O grupo Clóvis Moura tem visitado as comunidades de remanescentes de quilombos, coletando dados. Os moradores mais velhos são chamados para narrar as histórias de suas comunidades, sendo feita também a caracterização da condição socioeconômica de seus habitantes. O material recolhido é encaminhando à Fundação Cultural Palmares. De posse desses informes os técnicos da Fundação Cultural Palmares emitem um documento afirmando que aquela área é uma Terra Quilombola ou Terra de Pretos. Este trabalho do grupo Clóvis Moura resultou no reconhecimento de 20 comunidades remanescentes de quilombos. Reconhecimento, aqui, significa dizer que os negros daquelas terras são informados sobre o conceito de remanescente de quilombo e se auto-definem como tais. Algumas das comunidades encontradas no Paraná têm 200 anos de existência comprovada, de acordo com informações contidas “em papel passado”. Suspeita-se que algumas comunidades podem chegar a 350 e até 400 anos de idade. Vencidas estas etapas, o passo seguinte será dado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que deverá formalizar o lento processo de titulação das terras em questão. Atualmente, a expectativa do Grupo de Trabalho Clóvis Moura é de que o Paraná tenha 86 comunidades quilombolas, mas há indícios de que podem ser bem mais[5]... Não bastassem os fatos mencionados, surpreenderia aos adeptos da tese de um Paraná europeu as estatísticas sobre a composição étnica da população de Curitiba e região metropolitana e mesmo do Estado. Certamente, a presença africana é muito mais forte do que se supõe... No Brasil, ninguém gosta de ser chamado de racista, ou de ser flagrado na prática de atitudes discriminadoras. Por aqui é raro alguém assumir que agiu orientando-se por sentimentos que minimizam a dignidade de outra pessoa. Particularmente, no caso de ser uma pessoa negra. Ainda que dados estatísticos venham a sugerir alguma mobilidade social entre parcelas da população negra, contudo sua imensa maioria permanece confinada a humilhantes e desesperadoras condições de vida. Que significam essas considerações quando postas frente à sentença do profeta Isaías? Como trabalhar para se construir uma sociedade justa? Como pensar numa justiça que não seja meramente formal, mas que contemple essas populações que se encontram na matriz da formação do Brasil? Como responder de modo justo à necessidade de direitos dos descendentes de mais de 4 milhões de homens e mulheres criminosamente escravizados no território brasileiro?
[1] Dizer culturas visa enfatizar a distinção entre produção simbólica (cultura espiritual) e técnica/tecnológica (cultura material).
[2] Em 19 de novembro de 2005, isto é, 117 anos após a princesa Isabel determinar o fim do trabalho escravo, o jornal Folha de S. Paulo publicou reportagem sobre conclusões da ONU a respeito de desenvolvimento social no Brasil, informando: “Um estudo divulgado ontem pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) mostra que, se os negros brasileiros formassem um país, ele ocuparia a 105ª posição no ranking que mede o desenvolvimento social no mundo, enquanto o Brasil ‘branco’ seria o 44.º” (TAKAHASHI, Fábio. Brasil dos negros é o 105.º de ranking social. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1911200512.htm. Acesso em 19 nov.2005. [3] Kabengele Munanga possui graduação em Curso de Antropologia Cultural pela Université Officielle Du Congo à Lubumbashi (1969) e doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (1977). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Antropologia , com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras. Atuando principalmente nos seguintes temas: mestiçagem, identidade nacional, Identidade Negra. [4] Clóvis Steiger de Assis Moura nasceu em 1925, em Amarante, no Piauí. Ingressou no PCB nos anos 1940, trabalhando como jornalista na Bahia e São Paulo. Foi um dos raros intelectuais que acompanhou o PC do B na ruptura de 1962. Nos anos 1970, destacou-se pela militância junto ao movimento negro brasileiro. Clóvis Moura produziu importante obra sociológica, histórica e poética. Em 2003, publicou-se trabalho coletivo sobre o autor: ALMEIDA, L.S. de [Org.] O negro no Brasil: estudos em homenagem a Clóvis Moura. [www.edufal.br]. Nos últimos anos, comunista sem partido, colaborou com o MST, produzindo ensaios para a Editora Expressão Popular. Faleceu, em fins de dezembro, no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, aos 78 anos. Em 2003, passara longos meses internado devido a câncer na garganta. Intelectual marxista conseqüente, apaixonado pela vida, a sua e a dos outros, destacou-se pela retidão, perseverança e bom humor desbocado. Deixa saudades entre os que o conheceram pessoalmente ou através de sua obra. Disponível em http://www.consciencia.net/2004/mes/01/maestri-clovismoura.html. Acesso em 15 mar. 2007. [5] Informações fornecidas por Socorro Araújo, fotógrafa e pesquisadora do grupo Clóvis Moura, em 18 out. 2006.
* Ivo Pereira de Queiroz.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Qual o legado de Debord? Qual a “herança” deixada por sua crítica ao cotidiano da atualidade? Ficara uma prática revolucionária, uma teoria revolucionária mediando uma insurreição situacionista? Apenas uma crítica da arte e um apelo ao seu excesso? Uma obra artística, literária, cinematográfica fundada na negação da própria obra? Uma crítica precoce do urbanismo moderno e de nossa Sociedade do Espetáculo? Uma ação subversiva, toda ela calcada e presa em maio de 68? O debate está aberto. A arquitetura do pensar situacionista, sua dinâmica, seus limites, o próprio estatuto situacionista pode ser compreendido na em torno de um único nome, Guy Debord. Porém, ele é diferente de seus companheiros situacionistas, possui um estilo próprio permeado pela leitura radical da imagem do capital, que certamente conduz elementos de nossa época, mas, que não pode ser confundido com um mero vanguardista nas ondas esquerdistas da cultura. Quarenta anos depois, Debord e toda trupi situacionista está na moda. A figura de Debord tem dominado os debates mais acalorados sobre a condição do feitiche da mídia, da imagem e servido até como teoria da comunicação de massa. Mas será está a condição de uma teoria crítica do espetáculo? Será que a legitimidade do contraditório do aparente rende sua complexidade ao próprio aparente do espetáculo? É possível uma crítica do espetáculo não absorvida pelo espetacular?

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Tempo de memória...

Em tempos onde à ira alimenta quase todas as vinhas, momento em que a razão bateu em retirada, noite em que o único empório aberto é o do desejo, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O multitempo, o multiespaço, a multinformação, não nos permite mais identificar o próprio fim, a própria condição e a prevalência do estado humano de existência. SAIA DE MIM, como diriam velhos “amigos”, mesmo que vomitado, expelido, exorcizado a vontade de uma nova aura, a condição de uma outra provocação, a afirmação de mais diversão com nosso velho álbum de fotografias mentais.Na perfumaria complexa de nossas/vossas teses fundamos a falência da razão, nos deleitamos no just in time do vivido, nos criamos nos jogos de linguagem, somos regidos pela imprevisibilidade do tempo presente, realizamos nossa natureza própria em um imenso empório de estilos. Alguém viu o Estado?
O movimento de banalização, que sob a diversão furta-cor do espetáculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a também em cada ponto em que o consumo desenvolvido das mercadorias multiplicou na aparência os papéis e os objetos a escolher (...) a própria insatisfação tornou-se mercadoria.
O que nos resta, se a nossa tarefa consiste em discernir a razão no mundo, vale dizer, desvelar as estruturas em vista da realização da liberdade razoável, é identificar quais são as estruturas e os mecanismos que desmontam a realização humana e a liberdade individual e social, demonstrando que a própria liberdade é tomada pelo discurso espetacular, tornando-se mecanismo negador da existência, daquilo que nós mesmos fizemos.

terça-feira, 1 de abril de 2008